Nossa Voz #1022 #Proliferações

Sete e um palmos

Ana Raylander Mártis dos Anjos

Casa do Povo
6 min readFeb 23, 2022

.hahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahaha…

Umas gargalhadas em negrito saíam debaixo do punhado de terra ferrosa. Na esquina da Avenida Rio Branco com a Rua Acre, só alegria. Era o Carnaval de 1919 que começava a esquentar os milhares de carcaças de frios homens cariocas, renascidos a sete palmos do chão. A festa, finalmente, deu à luz mortos daquele último ano. Do que se tem notícia, eram 15 mil homens a rodopiar pelas ruas do centro da cidade. Eram 15 mil homens dispostos a viver tudo aquilo que não puderam na pré-vida, como passariam a chamar a vida antes da grande gripe.

Aqueles dias em que voltariam para a superfície outra vez seriam o gozo pleno dos arrependidos. Um “e se” generalizado tomava conta das cabeças já ocas dos frios homens cariocas. E se eu tivesse ficado em casa? E se eu não tivesse tomado o Vanadiol? E se eu? E se? E se? E se?… A verdade é que já não importava agora. Os 15 mil, que ali renasceram, seriam mais conhecidos pelo que foram capazes de fazer depois de arrebatados do que pelo que fizeram antes da espanhola. Pouco se falaria, dali em diante, sobre a pré-vida de Joaquim, de Adriano, de Marcelo, de João e todos os outros. Somente um deles, dentre os 15 mil, seria notado antes e depois do arrebatamento.

O carnaval de 1919 não foi apenas uma festa, foi a volta daqueles que estavam soterrados por palmos de terra e de gripe. Para os que ficaram, as batalhas de confete seriam uma forma de dirimir a dor da partida dos amigos e parentes; já para os que se levantaram depois do arrebatamento, batalhar confete e aspirar lança-perfume seria começar outra vez neste mundo. Ao abrir as mãos já carcomidas por larvas de inseto, os que voltaram preenchiam os seus buracos todos com pequenos círculos de papéis coloridos. Os confetes, que caíam aos montes nas batalhas, traziam aconchego e calmaria para as partes, já faltantes, de seus corpos em estado podre.

Ninguém soube explicar como foi que os 15 mil homens puderam retornar para esse plano, mas todos os não arrebatados pela grande gripe sentiram a sua presença naquele carnaval. Existem teorias malucas e mirabolantes que tentam explicar o acontecido, mas nenhuma delas obteve, até o momento, real valor científico. Como puderam os que haviam supostamente morrido naquela tragédia pandêmica voltar para a superfície? Porque esperar a festa para regressar e renascer? Cristo falaria através desses homens? Por que todos eles não paravam de rir pelas ruas do centro? Essas e outras dúvidas tomaram as esquinas da capital e seus arredores, mas nenhuma delas, até o dia de hoje, ousou ser respondida.

Matheus, o mais cobiçado dos que foram tomados pela grande gripe do ano anterior, estava de volta e intacto. Talvez, quase intacto. Tinha agora 1,83 de altura, suas medidas haviam se retraído com a passagem da pré-vida para a vida. Continuava forte se comparado com o restante dos arrebatados, mas não exageradamente forte como antes do ocorrido. Sua pele havia perdido considerável porção de água. Matheus parecia ter encontrado as medidas exatas de seu corpo. Preenchido por combinações gasosas, derivadas da putrefação, suas panturrilhas e pernas ganharam um desenho único, impossível de ser alcançado com horas de treino e de dieta. Se antes, transitando pelas ruas do velho centro, o rapaz de 24 anos conquistava os corações das jovens com o seu peitoral exageradamente volumoso, hoje, depois de levantar outra vez, parecia deixar em completo torpor todos aqueles que fitavam os seus profundos olhos pretos.

Embora sua pele, malcheirosa, azedasse os narizes de todas as meninas poupadas pela espanhola, o seu olhar ainda era capaz de fazer vibrar os corações, disfarçando, então, o odor que agora lhe era próprio. Seus olhos acometiam aqueles que, corajosamente, arriscaram a fitá-lo. Era o olhar de Matheus, o homem mais bonito que lançava um feitiço carnavalesco naqueles que não haviam sido escolhidos pela grande gripe e estavam soterrados por sete palmos de confete. Olhar para o rapaz provocava desejo de festa e de folia.

Capa do jornal A noite, Rio de Janeiro, 3 de março de 1919. Acervo Biblioteca Nacional.

Para os que dançaram até a exaustão no festejo daquele ano, carnavalizar tornou-se um imperativo incontornável. De tão sintomática a festa, não se falou noutra coisa nos jornais de janeiro a março. Os cronistas carnavalescos, responsáveis por escrever e agenciar o festejo na capital, deram manchetes apoteóticas sobre a grande alegria carnavalesca. De deus momo a batalhas de confete, de crianças desaparecidas na folia a velhos que enlouqueceram de tanto dançar, de palhaços que cruzavam a Rio Branco a cambalhotar a profissionais da saúde que deixaram seus postos para cair na folia. Tudo isso parecia ter uma ligação com Matheus, o homem mais bonito dos arrebatados, e seus olhos de um negro profundo.

Quando, em meio às pilhas de corpos, deu o seu primeiro suspiro de renascimento, Matheus desesperou-se. Seu corpo ainda guardava a memória dos nervos enfraquecidos, do cérebro em esgotamento, do corpo forçado ao emagrecimento e à diminuição do sangue. Como era de costume com os arrebatados pela gripe, os efeitos eram viscerais. As doses exageradas de Vanadiol, tomadas na tentativa de sobreviver à espanhola, ainda adocicavam a sua boca e entorpeciam o seu corpo.

Ao passar a língua em seus lábios, Matheus sentiu, mesmo que ainda doce, a aspereza de uma lixa grossa e ruidosa. O jovem, que tinha antes do arrebatamento apenas as mãos calosas do treino pesado, parecia ter endurecido da cabeça aos pés. Nódulos bastante aparentes e rijos tomaram conta de todo o seu corpo. Para os que puderam tocá-lo, a sensação era de percorrer um chão de cascalho grosso, muito diferente da pele macia e amarronzada de antes. Ainda sim, seus olhos entregavam tudo aquilo que o seu corpo havia perdido com a passagem. Era como se o jovem de agora ainda tivesse, em seu miolo carcomido, o que transpirava em excesso no jovem de antes.

Matheus, quando arrebatado pela grande gripe, era lamentado do Leme ao Pontal. Do extremo norte ao extremo sul da cidade ouvia-se os lamentos dos pássaros e das árvores. Para os que ficaram, perder o garoto parecia perder a noite e o dia. Mas quem era Matheus, o homem mais bonito? Por que a terra se doía tanto com a sua partida? Por que o mar se estremeceu ao saber dos sete palmos de terra que o cobriam? Para explicar esses e outros fenômenos ocorridos entre a pré-vida e a vida, seria preciso, para todas aqueles que gozaram de uma única chance de estar no mundo, entender o efeito do último habub, que dividiu esses dois tempos.

O último habub — a nuvem de poeira que dividiu a pré-vida da vida — cobriu toda a cidade do Rio de Janeiro com um grande marrom opaco. Tudo leva a crer que a areia de toda a orla carioca se levantou em uníssono, cobrindo o punhado central da capital. Daqui, de onde eu escrevo este relato, na esquina da Joaquim Palhares com João Paulo I, nem mesmo o morro do Corcovado, onde no ano seguinte seria iniciada a construção do Cristo Redentor, pôde ser visto. Não que antes do último habub pudéssemos ver o Corcovado ou o Cristo Redentor dessa esquina. Ele não abriria os seus braços na gripe de 1918, no carnaval de 1919, nem mesmo cem anos depois, quando a esquina Joaquim Palhares com João Paulo I tornar-se-ia a cena de um crime político.

continua…

Ana Raylander Mártis dos Anjos (1995), nascida no cafundó do mundo. Em sua prática procura estabelecer um diálogo entre a história coletiva e a sua própria história. Entende sua atuação como um fazer interdisciplinar. Vem recorrendo com frequência aos saberes da educação, escrita, performance e brincadeira em projetos de longa duração.

Você está lendo um trecho de ‘Sete e um palmos’ de Ana Raylander Mártis dos Anjos. O texto integra a edição 1.022 de Nossa Voz com o tema Proliferações. A publicação editada pela Casa do Povo será lançada em maio de 2022.

Retire seu exemplar gratuitamente no Bom Retiro, em São Paulo, ou apoie a Casa do Povo e receba Nossa Voz em casa. Acesse aqui o programa de apoio recorrente e saiba como fazer parte aqui.

--

--

Casa do Povo

A Casa do Povo é um centro cultural que revisita e reinventa as noções de cultura, comunidade e memória. www.casadopovo.org.br