Nossa Voz #1023 Céu da boca

Outros espaços, outros corpos comunitários

Tamara Crespin

Casa do Povo
10 min readAug 1, 2023

O eruv é um fio de diâmetro milimétrico, transparente. Uma fronteira. Uma delimitação judaica real e imaginária, concreta e abstrata, visível e invisível, poética, física, ficcional, literária e literal, legal e comunitária.

Conta o Sêfer Ietsirá que em todas as tardes do sexto dia da criação, antes mesmo do pôr do sol, dois talmúdicos se encontravam nas encostas do monte Moriá, em Jerusalém. Neste recinto sagrado, esculpiam conjuntamente um bezerro de barro e gravavam em sua testa a palavra emet (do hebraico, verdade). A história nos conta que, com o auxílio de algumas bênçãos, o bezerro nasce da lama, ganhando vida. Logo em seguida ambos talmúdicos matavam o animal e o serviam de alimento na ceia festiva. Yehuda Amichai nos lembra que a busca por um bezerro [1] (ou por um filho) sempre foi o princípio de uma nova religião nesses montes [2].

Ao se pensar a respeito de tempo e temporalidade judaicos algumas clareiras já se mostram. Como nos recorda o escritor Amós Oz e sua filha Fania Oz-Salzberger, por mais que o conceito de espaço-tempo judaico mantenha-se interligado à cultura ocidental, sua definição ultrapassa de todas as formas possíveis a progressiva flecha ocidental. Ou seja, esse pensamento maniqueísta e dialético entre passado e futuro deve ser observado e interpretado com cautela. Isso porque a noção temporal-espacial judaica está interligada a dois preceitos principais, o conceito de comunidade e o conceito de identidade, e vinculada à manutenção tanto dessa comunidade, como de suas relações interpessoais e a conexão com a criação divina.

Dessa maneira, o conceito judaico de espaço-tempo, assim como grande parte de suas reflexões teóricas, é moldado pelo consenso do debate talmúdico sobre os textos bíblicos, e surge em determinadas épocas enquanto demandas comunitárias reais. Ou seja, as tentativas de construção e demarcação propriamente judaicas ultrapassam as barreiras dos séculos e se consolidam nos símbolos religiosos, tradicionais, culturais e festivos em escalas corpóreas distintas — que, mais que lembretes diários, são declarações públicas e comunitárias de identidade e fé.

É dentro dessas tentativas de viver e manifestar judaísmos de formas comunitárias que nasce o eruv. Uma proposta de criar outras espacialidades e lugares de compartilhamento — entendendo a complexidade desses agrupamentos. O eruv divide o público e o privado, o secular e o sagrado, o trabalho e o shabat. E se torna um espaço comum, uma outra frequência. Um lugar onde as leis judaicas podem ser religiosamente realizadas de maneira segura durante o rito.

O eruv é um símbolo do shabat — o sétimo dia da criação. Momento em que Deus, após seis dias de intensas melachot (do hebriaco, ação e atividades criativas), não criou mais nada — contemplando o Mundo e suas coisas. Durante o rito do shabat, judeus, judias e judies recordam o ato da criação divina do Mundo por meio do descanso espiritual, do não trabalho criativo. Em função disso, pode-se definir melachot como atividades que interferem no descanso, na ordem natural das coisas, bem como na maneira que o mundo estava no exato momento em que foi concebido o shabat. [3]

O eruv surge a partir da última proibição judaica: a transferência de um objeto entre uma propriedade pública para uma propriedade privada e vice-versa. Já que retirar algo de um espaço, de sua localidade, e colocar em outro lugar é uma interferência direta na ordem natural das coisas. O shabat parte do princípio da contemplação: quando o indivíduo observa o Mundo sem a pretensão de criar nada mais, permite-se então uma reflexão sobre os seus atos, gerando uma maior aproximação com familiares, com a comunidade e com Deus. Os humanos foram criados para terem prazer com a conexão divina. Objetos — como bolsas, celulares, carteiras, livros — são considerados elementos da vida externa, do mundo mercantilizado e, por isso, são listados enquanto artifícios de refúgio que permitem distanciamentos entre o seu corpo e o corpo do outro.

Tendo isso em vista, revisitemos a proibição do transporte de objetos. A lei judaica permite sim o ato de carregar objetos em espaços privados durante o shabat. Há a permissão de sair de um cômodo em direção a outro carregando uma travessa, um copo de água ou um livro. Isso é possível porque a filosofia judaica parte do pressuposto de que há uma familiaridade entre os diversos indivíduos que compartilham um certo espaço de convivência: a moradia, o lugar em que se vive, se come e se compartilha com outras pessoas. O shabat não considera carregar dentro da casa — o espaço privado — uma ação proibida, já que acontece dentro de uma pequena comunidade.

Além disso, o eruv é uma brecha na lei, uma ficção legal cuidadosamente elaborada. Entende-se que todas as tradições, os costumes e as leis, apesar de trabalharem em sua maioria com o simbólico e com o subjetivo, nascem de demandas concretas de uma comunidade. O eruv é, afinal, uma necessidade. A construção máxima de pertencimento comunitário. Uma tentativa de demarcar espaços urbanos públicos, de se apropriar dessas territorialidades para delimitar uma comunidade e construir territorialidades próprias — já que o território, em seu sentido simbólico, existe através da apropriação realizada por algum grupo. Dessa maneira, o eruv é uma proposta para manter a comunidade apesar de suas restrições do dia de descanso espiritual, valendo-se do cercamento de uma certa região, para que este espaço se torne uma localidade apropriada, fechada e domesticada.

Na prática o eruv é uma expansão do espaço doméstico da casa para o domínio público de ruas e calçadas. Pode ser imaginado como uma refeição compartilhada expandida no território; uma vontade de viver os diversos judaísmos em comunidade, para além do círculo familiar — em que os espaços podem e devem ser alargados.

Este é o eruv que deve ser utilizado para permitir que nós possamos trazer coisas de dentro para fora. De nossas casas para os nossos quintais. De nossos quintais para nossas casas. De casa em casa, de quintal em quintal, de terraço em terraço. De nossas casas e nossos quintais para becos e vielas, e de becos e vielas para suas casas. Para nós, e para todas aquelas pessoas que vivem aqui, e quem se juntar conosco durante o rito do shabat e nas festividades. [4]

Nessa lógica, além da construção simbólica, religiosa e conceitual, o eruv se instala fisicamente nas cidades delimitado pelos tshurat hapetach — dois postes fixos nas extremidades das calçadas paralelas e ligados por um fio de nylon transparente. Essa interferência no espaço público cria a ideia de uma porta, um umbral, uma passagem entre externo e interno — aquilo que está dentro do eruv e o mundo exterior.

O eruv é um marcador legal e social de pertencimento comunitário. Estar dentro dessa territorialidade, dessa construção fictícia de bairro, inventado e apropriado pelas comunidades judaicas, permite uma simbolização, uma marcação de pertencimento identitário. Um estabelecimento kosher, apesar de não funcionar durante o rito do shabat, deve estar dentro dessas delimitações enquanto um símbolo de pertencimento. Ou seja, o eruv é um assunto comunitário. Isso porque, durante o rito do shabat, há a obrigação da ida às sinagogas, bem como da realização de ofícios religiosos e de preces. A sinagoga, além de um símbolo de pertencimento comunitário, é um local de encontro, de convívio e de socialização. Se, por conta das leis restritivas do shabat, uma pessoa que necessita de um objeto para sair de sua casa e ir a esse espaço de culto não pudesse realizar sua locomoção sem a existência do artifício de eruv, a comunidade estaria automaticamente excluindo indivíduos que utilizam bengalas, cadeiras de rodas, pessoas com mobilidade reduzida, pessoas com deficiência, adultos com crianças de colo que necessitam de carrinhos de bebês. Nem mesmo crianças pequenas sairiam de suas casas para a confraternização com outros de sua idade, privados de viver um judaísmo em coletivo.

O eruv se sustenta enquanto um fortificador de comunidade — no sentido mais amplo dessa palavra. Já que, segundo Luiz Antônio Simas, a necessidade de viver em comunidade, de conectar e de manter conexões, “representa a agregação de diversos elementos em busca de objetivos comuns”. O eruv nasce enquanto resposta à vida comunitária, surgindo no limiar, na brecha da lei, no tensionamento das interpretações talmúdicas.

Ao cercar uma certa territorialidade, o eruv não incide diretamente em espaços públicos como os conhecemos. O eruv cerca espaços que são considerados carmelit, a ponto de domesticá-los, torná-los seus. Carmelit são os lugares que tentam se aproximar de um espaço público, porém, segundo as leis religiosas, não o são: as ruas de bairro, pequenas vilas de casas, ruas de comércio menos movimentadas. O eruv, ao conceber os espaços carmelit — espaços do pequeno, do pouco trânsito — procura compreender que as pessoas que percorrem por essas zonas já fazem parte de um microcosmo; a ideia de casa, de intimidade entre os transeuntes, a comunidade em si já existe.

Foto: Perola Dutra

Quando a rua vira casa

O eruv é uma área dispersa e apropriada. É uma territorialidade agrupada transformada em casa, apesar de estar nas ruas. Na Casa do Povo, a festa-proposta do eruv [5] extrapolou a comunidade judaica e os limites da calçada, e trouxe uma experiência de comunidades temporárias aos mais diversos coletivos e grupos de bairro e sua vizinhança.

Frequentemente dizemos que comemos nossas festas, e foi exatamente isso que aconteceu. Dançantes, cantores, poetas, enxadristas, fazedoras de sabão, lutadores de boxe, passantes, crianças, pessoas comuns — todes se uniram à enorme mesa de almoço posta em meio à rua, compartilhando as experiências daquela manhã. O lançamento do livro Yiddish, de Samuel Kilsztajn, no primeiro andar, ocorreu simultaneamente à oficina de sabão; o Bingo do Povo, do Grupo Mexa, em conjunto com a Estação Gráfica. No terraço, pessoas dos mais diversos coletivos acompanhavam os resultados das lutas do Boxe Autônomo ocorrido naquela tarde, enquanto um grupo de arquitetes e ativistas discutiam as possibilidades do aluguel social no Fundo Fica. O som badalado da Versa, no segundo piso, se misturava com o samba do grupo Pagode na Lata que acontecia na rua. Coreanos escutavam o coral Tradição no primeiro andar, enquanto judeus participavam da oficina de bordados com o coletivo Empreendedoras Sin Fronteras. As comunidades temporárias se estabeleceram, as barreiras foram alargadas; as trocas, maiores. A Casa do Povo celebrou e reinventou o bairro em que vive, se tornando um espaço comum, aberto e coletivo.

Durante o evento, a última música cantada pelo Coral Tradição, regido pela maestrina Hugueta Sendacz, nos traz esperança. Lechaim!, eles disseram. Aqueles que desconhecem a gramática hebraica não saberiam responder porque a palavra haim (em português, vida) é escrita no plural. [6] Os grandes sábios explicam a impossibilidade de se celebrar apenas uma única vida no judaísmo, já que a filosofia judaica crê que todos os seres humanos são compostos por duas partes — a primeira, espiritual (a alma); a segunda, física (o corpo e a carne). A vida mundana e a vida transcendental de cada indivíduo estariam em constante equilíbrio.

Perguntemos por que essa foi a última música? Porque nós, judeus, judias e judies, mas, principalmente, nós, manifestantes de um judaísmo em diáspora, celebramos a vida em todos os seus aspectos possíveis. Celebramos a vida nas festividades e nas banalidades do cotidiano. Celebramos a vida nos costumes e nas festas ortodoxas e tradicionais. Em uma palestra em 2021, [7] a pesquisadora e vice-presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil de São Paulo (IAB-SP), Gabriela de Matos, disse: “Os povos em diáspora celebram a vida”.

Para nós, judeus, judias e judies, o Lechaim! não basta ao se tentar diferenciar a vida mundana da vida do mundo porvir. Sua justificativa permanece no limbo por causa do inegável instinto de compartilhamento comunitário. Uma legítima celebração à vida judaica, de seu vizinhe, companheire, amigue. Uma celebração à vida de minha comunidade, que, ao mesmo tempo, não procura se distanciar de uma dinâmica exterior. Dentro dessa essência nasce o plural. Uma celebração da divergência, da vida alheia, da vida de outras culturas, outras vivências e outras tradições.

É em busca dessa celebração de vida, de rito e, principalmente, de uma celebração identitária plural e não dogmática e de seu possível compartilhamento, que permitimos a construção de novas territorialidades, de outras frequências, dos eruvim, dos espaços de compartilhamento. Ao fim, há uma necessidade judaica de criação de espaços comunitários, que se apresentam enquanto respostas diretas e/ ou indiretas ao processo de diáspora e, assim, à preservação de uma identidade na qualidade de grupo. Dentro dessa busca surgem as delimitações, os atos de memória, de lembrança, de comemorações e de festividades. Tais demarcações buscam compreender o alcance e a silhueta de um corpo e como ele regula, resguarda e simboliza seus próprios limites de pertencimento. Ou seja, muito mais do que limitações, essas demarcações, sejam elas reais e/ou imaginárias, constroem espaços comunitários de identificação coletiva.

Como nos lembra Ivo Minkovicius em Você sabe onde fica o Bom Retiro?: “Acredito que exista em nosso interior uma espécie de planejamento urbano- -afetivo. Ele é projetado aos poucos durante a nossa vida. É resultado dos lugares que passamos frequentemente e que estabelecem vínculos fortes conosco, a ponto de nos sentirmos em casa, mesmo estando nas ruas.” [8]

O eruv é isso. É estar em casa, mesmo estando nas ruas.

Tamara Crespin (São Paulo, 1999) é filha de Luciana, que é filha de Dora, que é filha de Trena — que nasceu no shtetl de Łódź, mas morou no Bom Retiro. Judia, estudante de arquitetura e ensaísta, atualmente pesquisa e investiga as intersecções das artes visuais, colagem, design gráfico e literatura expandida. Compreende a judeidade como parte intrínseca de suas produções e a diáspora como lugar de possibilidade.

Outros espaços, outros corpos comunitários é um texto de Tamara Crespin publicado inicialmente em Nossa Voz n.1023, publicação impressa e gratuita da Casa do Povo. Saiba mais aqui.

Notas e referências

[1] No original, cabrito. Ou qualquer outro animal de pasto.
[2] Yehuda Amichai, “Um pastor árabe procura um cabrito no Monte Sion”. In: Terra e paz. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2018, p. 29.
[3] São ao todo 39 melachot, ou seja, ações proibidas de serem realizadas durante o rito sagrado do shabat. Entre elas: plantar, arar, arrancar, juntar, debulhar, dispersar, selecionar, moer, peneirar, fazer massa, assar, tosquiar, lavar, desembaraçar, tingir, fiar, esticar o fio, passar o fio, tecer, desfazer o fio, atar, desatar, costurar, rasgar, caçar, abater, pelar o couro, curtir o couro, alisar o couro, demarcar o couro, cortar, escrever, apagar, construir, destruir, apagar o fogo, acender o fogo, terminar a manufatura de algum objeto e transportar um objeto entre uma propriedade pública para uma propriedade privada e vice-versa.
[4] Benção do eruv (tradução da autora).
[5] No dia 06 de agosto de 2022, a Casa do Povo realizou sua primeira festa de bairro, a qual deu o nome de eruv. A programação reuniu, em um único dia, dezenas de grupos e iniciativas que habitam o prédio no dia a dia, transbordando suas atividades para a rua Três Rios. [N. E.]
[6] Os sufixos “im” das palavras hebraicas indicam plural.
[7] “Da pesquisa ao ativismo”; dia 07 de junho de 2021. Palestra proferida dentro da grade curricular de Estúdio Vertical da Escola da Cidade, 2021.
[8] Ivo Minkovicius, Você sabe onde fica o Bom Retiro?. São Paulo: Editora Sêfer, 2020.

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A Casa do Povo é um centro cultural que revisita e reinventa as noções de cultura, comunidade e memória. www.casadopovo.org.br